A coluna de hoje é uma das matérias de “Movido a Gasolina, coletânea das melhores reportagens da minha carreira publicadas em revistas como Road & Track, Car and Driver, Quatro Rodas e The Red Bulletin.
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A ideia era simples: embarcar em um voo para Los Angeles, pegar um carro, cruzar a fronteira para o México, dormir um punhado de horas, pular para um carro 4×4 e, então, dirigir sem parar por 1.047 milhas, ou exatos 1.684 km: a duração do rali Baja 1000 em 2006.
Tacos, Tecates mornas, paisagens incríveis, mais Tecates mornas e um olhar exclusivo nos bastidores do trabalho da equipe MillenWorks, da lendária família ralizeira neozelandesa homônima, e na estreia competitiva do carismático FJ Cruiser, recém-lançado pela Toyota. Uma aventura ao estilo do grande Hunter Thompson em Medo e Pânico em Las Vegas, apenas mais empoeirada, pensei. Tou dentro.
O problema é que eu não contava com o poder destrutivo de… Deborah Secco. Ou, mais precisamente, de Sol, a personagem da atriz na novela global América, de 2005.
Cuma?, perguntaria Didi Mocó. Faz-se necessária então aqui uma…
… PAUSA PARA INTERLÚDIO:
Explicando: até 2005, o México não exigia visto de turista para brasileiros. Em 2004, por exemplo, cobri a final da extinta Fórmula Mundial na Cidade do México, vindo dos Estados Unidos, sem passar por nenhum entrave de imigração.
Corta para o poder de persuasão de uma Novela das Oito 12 meses depois, e o afluxo insano de brazucas buscando imitar a personagem da novela, por ele causado. Se você, como eu, nunca mais viu uma novela desde o advento da TV a cabo no Brasil no início dos anos 90, permita-me usar do Google para refrescar sua memória: em América, a bela Sol ia em busca do sonho de uma vida melhor nos EUA imigrando ilegalmente através da fronteira mexicana.
Foram tantos brasileiros tentando entrar ilegalmente nos EUA através del Mexico Gostoso que os americanos pressionaram as autoridades mexicanas a imporem exigências idênticas às dos EUA para cidadãos do Brasil entrarem no México.
Como boa nação latino-americana, porém, os mexicanos não se preocuparam em criar nenhuma estrutura para atender o volume imenso de burocracia que as novas exigências acarretaram. Resultado: os arredores do Consulado do México no bairro dos Jardins, em São Paulo, viraram uma espécie de Cracolândia da classe média durante boa parte de 2006. Era preciso madrugar – literalmente, dormir – na calçada para garantir um lugar na fila que possibilitasse conseguir uma senha de número baixo o suficiente para se ter esperança de ser atendido no mesmo dia.
Friso na palavra esperança: retirar a senha não garantia atendimento no mesmo dia. Se o seu número não fosse chamado durante o horário do expediente, que se encerrava às duas da tarde (!!), so sorry: volte na madrugada seguinte. Coisa que tive de fazer, após não obter sucesso no primeiro dia.
Voltei, fui atendido após mais 12 horas de périplo, e, algumas muitas semanas depois, com a data da viagem para Los Angeles já se aproximando, o veredito: visto negado. Entre a longa lista de exigências de documentação copiada no esquema Ctrl-C Ctrl-V da lista de demandas americanas estava uma cópia dos três últimos holerites.
Como jornalista freelancer à época, e razoavelmente bem-remurado por sinal já que ganhava em dólares, eu não possuía três últimos holerites de lugar algum. Confiava, porém, na seguinte lógica básica para obter meu visto mexicano de turista:
- O México havia criado grandes exigências de visto para brasileiros por pressão dos EUA, para coibir a imigração ilegal de brazucas para os EUA através do México;
- Eu estar legalmente habilitado a trabalhar e residir por longo prazo nos EUA, por possuir o visto de trabalho H1B ainda vigente, com o qual eu havia acabado de residir nos Estados Unidos por quase dois anos
- POR QUE C*R@LHOS EU IRIA QUERER IMIGRAR ILEGALMENTE PARA O MÉXICO?
Crente nessas premissas, imaginei que obter o visto de turista mexicano seria um procedimento corriqueiro, afora, é claro, a parte de ter de dormir ao relento em uma calçada fria dos Jardins por duas noites seguidas.
Uma ingênua subestimação da minha parte da capacidade de burrice das burocracias estatais, contatei. Com o job da cobertura da Baja 1000 já fechado com a RACER, e um bom cheque em dólares me aguardando em Los Angeles, não tive escolha a não ser voar para os EUA e me tornar, provavelmente, um dos únicos casos da história de estrangeiro com residência legal nos EUA a entrar ilegalmente no México. Mais precisamente, a entrar escondido na parte de trás do caminhão de apoio da equipe MillenWorks.
FIM DO INTERLÚDIO
Famosa nos EUA mas pouco conhecida no Brasil, a Baja 1000 é acima de tudo um evento… brutal. Tal como o TT da Ilha de Man, Baja é uma espécie de viagem ao passado, uma prova que nossa sociedade atual demasiadamente sanitizada e advogadizada jamais permitiria que surgisse. Somente o fato de haver surgido em 1967 anos e ter criado uma tradição de décadas desde então faz com que continue a sobreviver.
Baja, em resumo: larga-se no extremo norte da Baja California, aquela longa “tripinha” da costa oeste do México, e chega-se ao extremo sul. Como, quando e por onde é algo muito mais livre do que na maioria dos demais ralis cross country que estamos mais acostumados a acompanhar, como o Dakar e o Sertões. A diferença principal é que a Baja 1000 não é uma competição de múltiplos dias, e sim uma corrida ponto-A-ponto-B non-stop com “mais de” mil milhas (ou seja, pelo menos 1.609 km) de extensão. Vencedores no geral costumam completar a prova em cerca de 20 horas.
Minha missão é seguir o Toyota FJ Cruiser da equipe MillenWorks como um cão fiel, mandando updates em tempo real da situação do time através de uma conexão de internet via satélite, uma super novidade high-tech ainda bem pouco confiável em 2006 e tão cara que foi paga diretamente para a RACER pela própria Toyota. A ambição do time é completar a prova abaixo da marca de 30 horas.
Estou embedado na equipe de apoio, que tem uma série de pontos de encontro pré-determinados com os pilotos (ao contrário de um Dakar ou Sertões, não existem acampamentos oficiais da prova ao longo do percurso) para realizar, se tudo der certo, apenas os trabalhos de rotina: reabastecimentos, trocas de pneus e de pilotos.
Já nascido como um puro-sangue off-road, “nosso” FJ Cruiser compete na categoria Stock Mini, destinada a carros com preparação leve. A equipe MillenWorks pertence ao lendário Rod Millen, neozelandês que fez fama nos EUA nos anos 80 e 90 ao vencer múltiplas vezes o campeonato americano de rali de velocidade e a famosa subida de montanha de Pikes Peak.
Rod é também um dos pilotos do FJ, ao lado do filho Ryan e do americano Adam Dupre – afinal, dois pilotos não bastam quando a missão é pilotar no fora-de-estrada durante 30 horas consecutivas. A preparação do FJ se limita a um santantônio, bancos e cintos de competição, um tanque de combustível maior, GPS, suspensão reforçada com amortecedores e molas de competição, pneus especiais para as dunas e… só. O motor, por exemplo, é o 4.0 V6 original, com alguns cavalinhos a mais que os 239 de fábrica somente graças a um humilde “kit Padaria” (os americanos riem quando explico a expressão “Bakery kit”) composto por remap, filtro de ar esportivo e retirada do escape original.
A potência é mais do que suficiente: na Baja 1000, você não está disputando contra os outros competidores (que incluem times de fábrica da Hummer, Mitsubishi e Honda na categoria Stock Mini), e sim contra os desafios jogados na sua diração pelo terreno e o ambiente hostil.
“O objetivo é manter o ritmo mais rápido possível, desde que sem aumentar os riscos de um erro de navegação ou de danificar o carro”, explica Ryan Millen, o mais novo do clã Millen que inclui ainda o irmão mais famoso Rhys (que vocês já conheceram em Rali Radical na pág. XXX e conhecerão ainda melhor em Cortina de Fumaça na pág. YYY).
“É preciso ser constante, e não se preocupar com os outros competidores. Correr apenas contra o terreno é o segredo em Baja”.
A questão é que não apenas a natureza enigmática da Baja California constrói os obstáculos do percurso. Um tópico polêmico, que a maioria dos pilotos americanos prefere evitar, é o hábito local de montar armadilhas, “tradição” à qual uma pequena parcela da população ainda se dedica, apesar de um longo trabalho de conscientização ao longo das décadas. A prática pode ir de coisas simples e relativamente inofensivas – como represar um riacho para aumentar o splash provocado pela passagem dos carros – até formas mais complexas e perigosas, como rampas de lançamento esculpidas para gerar saltos espetaculares, e até buracos cavados deliberadamente para causar capotagens.